terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Que ódio. Seguro nos braços, dentro de mim, além de qualquer chance de contato, um grito permanente. Ecoa na gruta da identidade, suburbana, fechada em um coletivo de submundo. Pergunto sempre, sempre, sempre. Quando será a época de explodir? Quando haverá oportunidade, chamado o momento de aflorar e dizer pra mim mesmo que a chama da diferença, o eclodir da individualidade, a bravura da flor que se abre para o mundo pode finalmente nascer?
Ainda não, nunca virá data. Cotidianamente a morte se esgueira sobre a cama, e ainda de manhã arrasta seu cajado sobre meus ossos, para me oferecer poção e consequência de sua aparição. Preso nas paredes do entardecer, nas amarras da burocracia, na culpa de não ser os meus superiores, engulo a bebida que me dá. Então o nada me engole.
E quando devora, não deixa rastros. Afinal, se fosse algo para deixar rastros, não seria nada. Torna-se verdade que o absurdo de viver é o nada. Os valores, decaídos, mascam a certeza de perpetuar a vida. Qualquer esperança, sinal, torre, bússola, bandeira sofre a morte instantânea. Afinal, dos devaneios possíveis, não há maior do que viver para algo. Vive-se, morre-se, e pronto. O fim como certeza é a determinação de quem já está morto.
Assim se faz a vida: com o cordão dado, alinhado e rompido. cremos porque queremos crer em qualquer destino. O que nos resta, senão a arrogância de resistir à falsidade e encarar o deserto árido do vazio? O trajeto percorre assim: olhos abertos, focados no nada, libido escassa por ódio à vida, vestes feitas pela mão do azar em pessoa: as coincidências que me fizeram irromper neste mundo.
Mas algo me chama na distância da irracionalidade, um recanto proibido, onde força nenhuma das palavras adentra. Aqui, algo está vivo ainda. Qualquer coisa que seja, um bebê, a última inspiração da atriz... Algo que diz: se o destino é criação do ser humano, então a falta de sentido nele nada mais é do que a própria vontade de nada haver no mundo. Uns colorem, pintam, fazem esculturas, e outros destroem. Seu papel na vida é recortar o próprio papel, demolir a arena, afugentar o teatro inteiro. Só assim se fazem vivos: supondo o nada em tudo.
"Quanta bobagem", continua esperança, sempre pequena, "pensar que a realidade é impenetrável ou simplesmente caótica. Quem o faz não enxerga a ordem por trás das coisas".
Eu grito, entre a armadura e a espada: "Não há metafísica, não há sentido, não há o que quer que seja! Por que teimar em significar cada coisa existente se no fundo, não há fundo? A pedra, o nascer, a morte, a árvore, a reação química e nós, animais tão mais insignificantes quanto o que criamos".
E é isto. Não há nada após o ponto final do livro. O nada, absoluto nada. É isto.
Entretanto, esperança me chama... E diz que a vida não deve ser obrigação. Mais ainda, ri da minha estúpida consideração sobre cada coisa.
"Como é possível que nós inventamos o sentido? Deus nunca foi inventado. Deus foi visto e lhe deram alguns nomes, imagens e definições. O mesmo acerca de anjos, demônios, espíritos... Nada está morto e nunca foi criado. Simplesmente vemos todas as coisas acontecendo e lhe damos nomes diferentes."
"Mas a realidade é uma só."
"E qual é?"
"Não há nada fora que se chame Deus. Tudo isto está dentro da imaginação e da ilusão. Só o que nos resta são corpos, hormônios, fome e um dia este Sol que explodirá para demonstrar a insignificância do universo."
"Sujeito encastelado você... Por que não seria Deus a razão de você ter nascido, ao mesmo tempo que toda história do óvulo é real?"
"Que seja. Mas então que crédito Deus levaria se sua aparição é tão importante quanto a de um repolho ou uma cegonha? Qual a diferença entre as três coisas?"
"Nenhuma. Entretanto, a experiência vale o dobro de qualquer coisa. Qual experiência temos do nascimento e da morte? Como as coisas se revelam para nós? Qual forma damos aos fenômeno? Que fazemos daquilo que acontece?"
"Tanto faz... A experiência é algo à parte. Já a coisa em si rejeita mais colorações e significações. Morte é o fim. Não há o que fantasiar."
"Como você pode diferenciar realidade de experiência? Já te disse: ver a falta de sentido é criá-la em tudo que se vê. Ninguém foge de si mesmo."
E eu rezo pra que tudo seja experiência. Do contrário, fixado na brutalidade das supostas "coisas como são". perderei a alma, Deus, destino, congregação. Me verei isolado e sem nome, como coisa que sofre por alguns anos e morre, E me parece que a verdadeira morte não ocorre aí, no acidente de estrada, mas antes, na crença absoluta de que não há nada, apenas dor e sofrimento, apenas areia e pó, os restos de uma única realidade amorfa e insensível.
Diante deste devenir desdenhoso, suspiro eu, abocanhando as migalhas de que talvez o universo seja Deus, de que dentro do mar há centenas de sereias, de que um diabo se esconde atrás da porta, de que um dia eu realmente falei com a Lua, e não foi devaneio.
(De que eu realmente falei com a Lua, e não foi devaneio).

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