segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Cazuza

Me desculpa, blog: havia perdido totalmente a sinceridade do meu corpo enquanto me escondia na cabana, junto das palavras.
Escrever tem destas coisas, né. De tanto exprimir pro mundo as sensações, caímos sem querer no estigma da imagem séria, do olho sério, da paisagem séria. E por mais romântico que sejamos, poéticos ou doces, este conteúdo atraente se perde na rabiola de nossa sincera sinceridade, em nossos modos simples e que não demandam escrita alguma.
Na vida real, fora das profundas cachoeiras que escrevo, existem outras máscaras nem tão sérias como as que aqui uso. Entenderam?
Sou o Marquinhos, e nem sempre esta devoção fascinante, ultra mega profunda dos meus poemas. Me sinto aliviado: sou ridículo. Ridículo até a última gota por acreditar que era tão pesado.
Sou tão bobo e tão ridículo que me sinto bem.
Graças a Deus somos todos humanos e não poesias: do contrário seríamos um saco, acredite.

Entre a cegueira e o cristalino

Apontou para o cenário musical:
— Tudo isto um dia será seu, meu filho.
O menino, pequeno em frente ao mundo, chocou seu corpo contra a realeza da paisagem.
— Tudo?
— Tudo. As árvores, as rosas e as tumbas.
— Também os jazigos?
— E as lápides. Meu filho — continuou —: esta é a cortina da cidade. Pra lá dos corpos estão os negócios, ansiedades, manias, os postos de gasolina e o que mais o homem procria para manter a irônica maravilha do progresso. Vê os prédios cinzentos?
— Sim.
— Pois bem; lá se esconde o mito do homem cotidiano. Pensa ele ter matado os deuses gregos, mas ainda consome seus folclores. O que guarda para si, hoje, não é nada menos que o mito da onipotência apolínea. Daí se enfurna desta literatura doce, e vive uma estátua cheia das perfeitas medidas. Mas logo, logo, será velho após os vinte e cinco anos. E então, descartado do mundo, buscará as raízes de outros tempos, quando era novo, forte e invencível.
Mas, você, meu filho, terá o reino dos reinos. Guardará os portões mais humanos que nenhum artista, professor, químico ou político pode aguentar.
— Como?
— A morte será o mais eterno presente que alguém pode lhe dar. Embalada na surpresa incógnita, ela baterá em sua porta. E se seguir meus conselhos, consumir os mitos saudáveis, todo o cemitério será seu.
— O que fará de mim proprietário?
— O sossego de um jogo de xadrez. Enquanto os persas guerreiam, as mulheres gritam, os filhos choram, continuará você sereno, a movimentar as peças do jogo. Quando chegar tua hora, não será afronta, mas merecimento. A vida, um sossego, será entregue sem medo à foice do tempo. E quando perceber ser parte do cemitério, conteúdo integrante ao imenso Nada, se sentirá bem, tranquilo, satisfeito, exatamente como alguém que cuida e divide uma imensa casa.
— Mas e quanto aos outros? Não morrerão também?
— Não. Apenas dormirão, acreditando ser sonho passageiro. Nunca morrerão se não tiverem vivido.
— E como se vive?
— O que os ventos dizem?
***********

Anos depois, o menino crescido se pergunta: o que os ventos dizem?
Absolutamente um mistério. Pra onde vão é mistério. Onde acabam é um mistério. O que realmente importa é onde batem em ti: no peito? Na cabeça? Nos pés?
Mas e se eles se cruzam? E se o medo resiste?
Calma! Arruma o quarto. Escova os dentes. Dorme. Sonha.
Então verá que, numa repentina linha, encontrará a roupa que quer usar. A pequena estrela pode ser o sol. A gota é começo do temporal.
Os ventos não dizem nada, absolutamente nada. Não busque entendê-los. A natureza deles é ir adiante, infernal, rápido ou vagaroso.
O melhor a fazer é senti-los. E onde baterem, siga-os, mesmo cego, mesmo perdido, mesmo descrente.
Quando perceber, logo estará conectado ao melhor dos sopros.
Então lembre-se:
— O que quer da vida?
Diga em alto e bom tom, sem medo deste mundo tão sólido:
— O que a vida quiser.
Claro, eles se assustarão, dirão que é necessário se guiar, ser firme e estar firme. Baterão o pé:
— Como?! Está louco?
Compadre... A vida não é este impulso sôfrego feito pela consciência, nem manifestação concreta do pensamento.
É tudo um pouco de tudo: o que eu quero da vida, e o que a vida diz pra mim. Onde o vento bate e onde meto minhas pernas. O que finalmente a música canta e o que finalmente danço no compasso que invento!
***************

Mas e se não sabemos onde eles batem? O que fazer?
Bom, então consideramos duas opções: ou o mar está calmo, e de fato, não há indicações temporárias do trajeto, ou eles sopram e de alguma forma não o sentimos.
De qualquer forma é a paciência que salva. Paciência e calma.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Amor em Outra Língua

O bigode de doutor Brownie entendia a língua que falava o botão do sapato de Lilian.
Foi amor a primeira esquisitice.
O bigode-paspalho, abestalhado e tonto olhava de quina a graciosidade esferoide do botão rosa do sapato roxo. Acaso por acaso, infelicidade por infortúnio e clichê por clichê, era mais um desses amores impossíveis. Como poderiam dois seres distintos, diferentes assim, viverem uma paixão dessas? Um bigode fofo, de tom preto botina poderia mandar poesias para um botão rosa, meio torto e sonolento, de um sapato roxo? Deus, que agonia!
Eis que o motorista dá uma brequada, e doutor Brownie — por descuido — solta-se do apoio do ônibus, e vai direto ao chão, esbarrando o rosto em um sapato roxo, que curiosamente tinha um botão rosa, torto e sonolento. O impacto foi forte, e o bigode estalou um beijo surpresa na recém descoberta paixão.
Doutor Brownie, meio desconcertado, levanta-se e pede desculpas à moça Lilian.
Ele desce no ponto morrendo de vergonha e prometendo a si mesmo nunca dar outro vexame destes.
Mas em algum lugar do corpo sentia-se realizado, feliz que nem criança quando ganha bala. Em algum lugar do corpo podia sentir cheiro de beijo e gosto de macaxeira. Seu bigode dormiu feliz.

Coesão

Certas coisas cortam o coração. Como então, calar a cabeça e consertar o quebrado, caído? Cacos e cacos moídos.
Copos e copas no chão quebradiço. Culpa e choro, coro da cisão:
Cabou, caiu, quebrou,
Cabe então, um colírio pra córnea.
Pra cor, color e dolor, semente e somente criação, caju!

10 Minutos

23:50
Aguardou o momento certo. A última tragada no cigarro, a bituca no asfalto e sim, agora seria o momento certo.
Pintou a paisagem com seu olho azul e respirou com fraqueza. A lua, as estrelas, a astrofísica, tudo macrocósmico era irrelevante. Só podia se interessar pelo momento certo.
23:51
Entrou no carro, checando todas as precauções: a chave estava na ignição, e o banco, confortável. Abriu o porta luvas.
23:52
Tirou de lá sua arma.
23:53
A colocou em sua jaqueta de couro, que tanto protegia contra o frio. Mantém o calor porque esta é sua finalidade.
E se tudo tivesse finalidade?
“Então a minha seria puxar o gatilho”, e riu.
03:47, dia anterior.
Sonhara com o rosto desfigurado de seu marido. Completamente destruído e aniquilado, pingando sangue, com a carne de seus lábios dependurada.
E acordou em pânico. Olhou ao seu lado: ele acordara também.
"— Alguma problema, querida?"
Seu olhar angelical a acalmou, e então dormiu novamente.
23:54
Mas agora era pérfido. Dissimulado. Estouraria seus miolos com prazer.
23:55
Olhou para o relógio. Com suave firmeza, abriu a porta. Subiu as escadas como se quisesse retardar o tempo, apreciando os milésimos do silêncio que precedia um baque.
23:56
Abriu a porta do quarto, e de fato, viu ele com outra. Ruiva, devassa e agora, assustada…
Olhou firme para seu corpo desnudado. Toda beleza desmanchada pelo sangue da carne, logo, logo…
23:57
"— Espero que saibam que isto não é filme."
Os amantes sabiam! Não teriam o que explicar, não era um mal entendido. Era a verdade nua, desnudada, despudorada, solta, livre.
Da cama, havia brotado o prazer, e agora, o tabu.
Da traída, brotava a dor.
23:58
Sacou a arma. Passeou pelo quarto. Olhou pela janela aberta, atenta ao cantar do grilo.
23:59
Mirou no marido, que assustado, prendeu a respiração.
Mirou na ruiva, que mordeu os lábios e se agarrou fortemente nos braços de seu amante.
Ergueu a arma em direção a própria boca. Puxou o gatilho.
00:00
O grilo finalmente descansou.

Desfragmentado

Flutuava a noite invertida, refletida no lago.
A lua se desdobrava, como um lençol amassado. Todo o espelho estelar se movia lentamente, acompanhado de uma brisa noturna.
Pegou uma pedra e a arremessou em direção à constelação. Primeiramente subiu, e percebendo o inútil esforço, resolveu descer, tocando o céu de mentirinha: todo o lago que refletia a astrofísica.
O pequeno alvoroço assustou Narciso, que se concentrava em encontrar todo seu mistério. Amava o todo. Amava suas partes. O choque que a pedra provocou arruinou todo seu belo e estático mistério.
Olhou para trás e notou um encapuzado.
— Quem é você? — perguntou.
— Aquele que o afastará de séculos de mitos, expressões e patologias.
Toda frase que rompe a motora realidade nos causa espanto. A escutamos bem, mas mesmo assim precisamos confirmar:
— Como?
— Exatamente. Irei te livrar, e mais ainda, humanizar.
— Me salvar do que, exatamente?
— Escute bem: seu nome é Narciso. Toda uma infinidade de literaturas, poesias, e síndromes nascerão de sua história. Em minutos você irá encarar seu reflexo, se espantar com toda beleza e terminará com o desejo de beijar a própria imagem. Morrerá afogado. E assim, serão séculos e mais séculos de citações. Entendeu?
Narciso franziu a testa. E como o encapuzado teria tanta certeza?
— E como tem tanta certeza? Como a convicção trespassa séculos futuros?
— Narciso, olhe para mim.
E tirou o capuz.
Ficou perplexo. O estranho, agora desmascarado, era ninguém menos que ele mesmo.
— Como isso é possível? Quem é você? Ou como pod…
— Sim, Narciso. Somos os mesmos. Somos o mesmo. Eu sou você. Você sou eu. A mesma pessoa, o mesmo corpo.
— Mas como eu habitaria um outro corpo senão o meu?
— A questão não é essa. A questão é que irá se matar. Mas eu posso te salvar.
— Isto é impossível. Minha morte resultaria num duplo suicídio! Você não pode me salvar. Se a decisão é minha, também é sua. Me salvar mostra que não somos o mesmo.
O Narciso-antes-encapuzado olhou para o lago. Respondeu:
— Quantos Narcisos existem?
— Três. O reflexo, eu e você.
— Não. Resposta errada.
— Como?
— Não existe Narciso nenhum. O reflexo é o que você imagina e ingenuamente chama de Narciso. Uma figura inventada, onírica. Você é outra pessoa. Eu sou sua consciência.
— Mas então como somos o mesmo? E quanta à idêntica aparência?
— Justamente. Estou aqui para te livrar do conflito. Olhe novamente para o lago.
E assim ele fez.
Gritou de espanto. O espelho agora mostrava outra pessoa. A mesma anteriormente, mas diferente em essência. O mesmo cabelo, olhos e boca. Mas só era ele mesmo, não um ideal separada de sua existência.
Levantou a cabeça e se surpreendeu com o vazio: sua consciência havia desaparecido.
Deitou-se, extremamente perdido. O que foi tudo isso? O que foi tudo isso!? Onde ele está?
Ficou minutos a se perguntar, atordoado com o acontecimento. Olhou para a lua, no teto estelar. Olhou para seu reflexo esferóide, amarelo.
Compreendeu que a pergunta correta é: “quem, afinal, sou eu?”.
Fitou sua própria imagem. Se tocou. Se beliscou, se mordeu, se apalpou, se masturbou.
E lentamente ia compreendendo: a consciência não havia desaparecido. Apenas voltou para seu lugar, que é dentro dele.
A imagem do espelho não mudou. Continuou a mesma.
O que finalmente havia mudado era ele: tornou-se uno, único, todo.
Um uno Narciso, um único Narciso, um todo Narciso.
E aprendeu, finalmente, a se amar.

O Herói da Família

Desceu do carro, abandonou a mãe. Disse “tchau” com o peso de adeus. Seria um homem aquele dia.
Um homem como o pai. Um homem enorme, carregando a mochila do Pluto de forma impetuosa.
Desceu as escadas, subiu mais outros 19 degraus.
(Por conta de sua ansiedade, contava a quantidade todos os dias).
Entrou na sala. Sentou-se ao lado de Antônio, seu amigo que desenhava dragões de uma forma que ele se espantava. Eram incrivelmente verossímeis, embora nem soubesse o que isto significasse.
Encolheu-se na carteira e esperou. Esperou o borrão que era a matemática representada no quadro negro. Esperou geografia, a decorar as capitais do Brasil. Depois a história, e em seguida, religião. Foi dado o primeiro sinal.
Pronto, tudo pronto. Seu estômago se encolhia de tanto nervosismo.
Mas nada foi consumado.
Apenas a observou como se fosse paisagem — embora nem soubesse o que era isso.
No dia anterior, sua mãe perguntara se gostava de alguém. Em resposta, negou até a morte. Não gostava de nenhuma menina chamada Renata. Aliás, odiava.
Infelizmente, ele sabia que não a odiava. E sabia muito bem que todas as crianças diziam isso quando perguntadas sobre algum amor.
Ele, de verdade, queria apenas dizer que ela fazia seu estômago se encolher.
E naquela noite, após o questionário intruso de sua mãe, ligou a televisão. Viu um homem e uma mulher se beijando. Se perguntou: por que os adultos fazem isso? Qual seria a sensação?
Deitou pensativo, como Cebolinha a bolar um plano inafalível.
Então o recreio terminara, e ele voltou pra classe. Sentou-se novamente, encolhido em seu canto, introspectivo.
Ela entrou logo após.
Aliás, ele sempre corria para a classe quando o recreio acabava. Temia que a menina chegasse primeiro, e temia mais ainda imaginar ser observado por ela.
Não.
Enquanto tivesse a agilidade de Flash, poderia se esconder dela, e melhor ainda, olhar escondido para seu cabelo.
E então esperou ainda mais, olhando sempre pro relógio.
Na verdade, não sabia ler os horários, e se perguntava se mais alguém no planeta — além de seus pais — poderiam entender aquela linguagem estranha.
Mentira.
Ele não se perguntava de nada. Só olhava pro relógio porque todo mundo fazia isso.
O toque do sino! Era a hora!
Esperou que ela fosse primeiro, na frente. Não gostava da idéia de ser vigiado.
A menina sentou-se no banco, onde todos ficavam a aguardar os pais. Ele sentou-se ao lado dela.
Disseram: “oi”.
Seu estômago se encolhia inteiro. Ficou olhando uma árvore sem conseguir se mover.
Tomou coragem e virou seu rosto em direção ao dela: estalou um beijo surpresa enorme!
Ela ficou atônita, com os olhos azuis abertos.
A buzina encobriu o momento, e a menina se retirou do banco em direção ao carro.

———

Vinte e cinco anos depois, já adulto, ele foi acusado de estupro e violência doméstica.
E ela, morreu das mesma causas.

———

Melhor tomar cuidado com o que achamos simplesmente fofinho.

O Cangaço e a Borboleta

Pele preta
Carapaça
Pata de touro
Bufalístico

Mefistófeles
Cornos de minotauro
A volúpia brutal
Carnívora, facínora, mortífera

A proteína
Encouraçada
Pesada
Cangaço

Um animal arfando
Deus em si mesmo.

Um dia, tornou-se azul
Subiu aos céus
Encontrou Zeus:
“O que faço aqui?”
— Bruto, escuta, puto
nascerás novamente, em forma de
[bailarina
A dançar de pernas abertas

E toda sua vulva revelará
um sexo florífero
Uma boceta de rosas.

Noite na Paulista

Olhou para o ônibus e se jogou. Sua imaginação o levou ao hospital, onde sumiu em meio ao branco da medicina.
Paredes brancas, jalecos brancos. Tudo claro, vazio. De alma colorida, em direção ao nada.
Sua alucinação durou alguns segundos, e então foi transportada de volta para a São Paulo con(t)urbada. 
Luzes carros noite fumaça piercings homossexualidade. 
Lembrou que pensa, que lembra, que enxerga, que é. Tentou cantar, mas o esquecimento da letra o irritava. Resolveu observar.
Absorver também, embora não soubesse o que seria isso. 
Porque absorver é apropriar. 
Apropriar é tomar para si.
O que se apropria? Conteúdos marcantes? Luzes externas extravagantes? O que excita?
Não se absorve; se entra em contato com o meio.
Pausa. Observe o pequeno meteoro de dentro dos olhos dela. Sua pupila dilatada é consequência do bagulho, baseado, ópio moderno. Seu sistema nervoso simpático expande seu corpo. A névoa flutua em frente aos seus olhos.
Na minha língua, “olho” é “skápt”. “Yust skápt” significa “seu olho”. Yust skápt entrava em comoção com o ambiente. Não absorvia, não transportava. Apenas tremeluzia como o mar.
Lados não mais existiam. Fora e dentro também não. Tudo é um eterno agrupamento. Seus olhos grudaram no ambiente, parasitava o mundo. Ela e ele, uma pessoa só.
Luzes carros noite fumaça piercings homossexualidade. 
Fugia do que? 
Observava as pessoas. Os jovens. Os estilos.
Naquele processo de absorção entendia como odiava o mundo. Ridicularizava-o até as últimas consequências. E ao passar perto das pessoas, cantava “people, people!”.
Não, não era poesia aflorada: era ódio. Inventava nomes, personalidades, ironias. Por trás do camaleão, habitava o Napoleão em desejo. E por trás do narcisismo, se escondia algo mais forte: solidão.
Não era “people, people”; era um apelo.
Mas escureceu, e ele dormiu. Ela dormiu também.

Um Monstro no Armário

Melhor que asas ou músicas, carinhos ou mensagens, pernas ou cabelos, é a possibilidade de sumir.
Cortar o fio entre o aqui e a luz de fora.
Amar a escuridão, pois é nela que a coletividade mora. É lá que o amor floresce, que a raiva cresce.
No escuro, o andaime desce.
Mas a tinta se eleva.
Pintores fantasmas decoram o prédio, então.
Cor sobre cor, o instinto da cor.
A pincelada só é possível no escuro.

Marginal Botânica

Talvez um dia
Trombando em cada concreto
Tormento, nó ou gravata
Tornado, trator ou vulcão
Tropa, tempestade, trovão
Traçado, tratado, divisão
Troço, tralha, treco, trem
Eu de repente

tropeço.

E caio em seu abismo de vogais:

AAAAA

EEEEEE

IIIIIIIIIIIII

OOOOOO

UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!

Motivo

Por que eu escrevo?
Não sei, e odiaria responder esta pergunta. Não gosto de interpolar argumentos racionais com sentimentos inexplicáveis. Este tipo de fusão me leva onde eu mais odeio em mim: falsidade.
Leia como eu divagaria acerca do amor pela escrita: "É uma catarse espontânea e explosiva. Aflorar o intocável, solidificar o não moldado, dar contorno à argila profunda, me descobrir e escapar de mim mesmo. Escrever é um ápice, força destrutiva de paradigmas e construtora de novos sistemas de pensamentos. É uma forma de espetar quem está em cima e acalmar quem está em baixo. É acordar quem está em baixo para espezinhar os de cima.
É dar valor, mesmo que através do desprezo.
Escrever é mundano. Escrever é a arte sobre o mundo, o pano que o encobre também. Está por trás do sentir, e gera a comoção. Escrever é descrever e escrevinhar. Definhar e desdobrar. Desenhar e desobedecer.
A caneta é meu meu verdadeiro olho.”

Mas na verdade, não há explicações. Eu não gosto de escrever pelo motivo acima apresentado.

Escrevo simplesmente porque sim (risos).

Um Estranho no Paraíso

Minha sombra de fada
se assusta
com a esterilização médica
o branco paradisíaco.

Minhas fadas, meus duendes
preferem o bosque:
esta pincelada de cores,
um dragão fosforescente.

Minha alma
Inveja
a
árvore

Meu desejo
despreza
a
Deus

A luz abrange o Espírito Santo, e a Santíssima Trindade
mas minha íris habita um único barco:
A Nau
dos Insensatos.

Dois Centímetros

Bom, são apenas dois centímetros. Dos dois dedos até a alça do sutiã.
Duas pessoas. Duas horas.
Dois centímetros, dois sexos.
Também são dois centímetros a distância entre a caneta e a prova que garantirá seu futuro. Assim que encostar a ponta dela, terá a tinta se esparramado, e seus caminhos, à mercê.
Eram dois centímetros também a distância entre o dedo e o botão de comando. A concretização espacial deste dois centímetros sucederam-se em um cataclismo: 6 de Agosto.
Dois centímetros: a vontade entre o giz e a lousa.
Meu professor, já cansado, enfrenta todos os dias este comprimento.
Mas avança, força seus músculos, pressiona o giz, e ensina.
O Sol se move, também. Não apenas por dois centímetros, mas por repetições destes dois centímetros.
Engano seu se pensa apenas no que é físico. O tamanho é um comprimento, mas todos os anseios são também questão espacial.
Do meu lábio até o seu, são também dois centímetros.
Do meu medo até a ambição de querer mais, são dois centímetros.
Toda nossa vida está nas distâncias deste dois centímetros. Seu ponto de partida, 20 milímetros, o resultado.
Satisfatório?
Pode não ser.
Mas lembre-se: estes dois centímetros estão em tudo. Em toda proposta, medo, vontade, curiosidade, tontura.
Só se mata esta distância através da tentativa.
Sabe a duração de nossa vida? Dois centímetros.
Sabe o tamanho de sua existência? Dois centímetros.
O tamanho do universo? Infinitos dois centímetros.

Money Talks

Abuse do corporativismo libidinoso:
Lambuze-se neste coaching carnal
Apalpe todo o financiamento corpóreo
Morda estas ações
Afague estas especulações

Beije os ativos, beije os passivos
friccione as entranhas da máquina empresarial
Acaricie a gravata excitada, roce em meu fausto terno
roce em minha augusta agenda
Se vicie neste capital

Dedilhe os investimentos
E agradeça aos humanos
que estes são mansos.

O Que o Sonho Berra

Se arrebenta nos mares da psique
Faz do caos, uma epopéia

Faz meu rochedo consciente
Esvair-se, partindo-o em mil partículas
fragmentárias: complexos de mim aqui e ali.

Para que de repente, numa emersão do dia
O monstro do lago Ness cante
E revele os abismos da água cristalina

Translocando a visão embaraçada
a fumaça da memória
Pondo no meu prato o descortinado quadro vivo

Então eu, de olhos fixos
encaro o macarrão no prato
o relógio da cozinha
e o remédio em cima da mesa:
escuto de longe a quimera dentro de mim

As bestas se agrupam em sinfonia
Cantando em árabe, russo ou grego
A visão embaraçada
a fumaça da memória
o descortinado quadro vivo

Dadaísta, cubista ou surrealista
até romântico às vezes
mas nunca, nunca!, realista

Deixe-me longe da pedra, da pedreira e do rochedo
afaste-me do cimento, do piche e da gasolina
eu quero que junto da dinamite, vá o meu dia
aos ares, para o inferno

Restando apenas:
a visão embaraçada
a fumaça da memória
o descortinado quadro vivo.

E o silêncio da noite:
na ausência de grandes feitos, méritos e medalhas
para que minha retina vasculhe
pó ante pó
os fragmentos do meu mar

ora nadando, ora boiando
nas águas deste imenso oceano
onde tudo sou eu:

a sereia da quarta série
a bruxa do desenho animado
o fantasma do corredor
o embaraço da nudez
meu amor, meus amores
todos os pronomes

[Meu inconsciente é um cálculo
infinitesimal
um átomo de proporções estratosféricas
um dragão do tamanho de uma formiga]

Desenhe sua vida num papel
apague os traços — mas não completamente:
deixe as marcas e os restos da borracha

Esta é a visão embaraçada
a fumaça da memória
o descortinado quadro vivo.

Artrópodes Existenciais

Dentro de casa
acenderam-se os lampiões
de tal forma que meu lânguido rosto
pálido, morto
também acendeu-se
[meu corpo é uma imensa cadeia fosfórica].

Não pude deixar de gritar, desvairado
os sabores atômicos dos confótons e feixelétrons
também não pude deixar de dançar, contaminado
com os novos horizontes, tão verticalizados
[O Sol brotou em mim, e eu a segui-lo]

Mas tão logo brilhante o lume de casa
infestou-se de insetos
e estes malditos mosquitos, agora digladiam contra mim
e se amontoam, viciados pela lâmpada
[lamparina, lampião, lustre, lanterna]

Eu os odeio, eu os espanto
mas elem voltam, renascem, quadruplicam-se
e por mais que eu, facínora de duas mãos
brutalmente solfeje o tapa preciso
o zunido da consciência continua a me atormentar
[noites mal dormidas].

Poema da Necessidade de Calmaria

Estilhaçar minhas janelas
Quebrar a coluna cervical da casa
Cegar as portas
Por fogo em espelhos

Torcer o banheiro
Esfaquear os sofás
Esmagar o jardim
Demolir minha construção

Abalroar as paredes
Pintá-las de sujo
Povoar de jacarés
Alimentá-los
Devorá-los

Metamorfosear em um jacaré
Viver de amor com Clara Crocodilo
Ser amigos dos ratos
Detestar seus sapatos e os barris de petróleo

Em seguida,
Morrer o jacaré.

Viver como bactéria
Entrar em esporo
Viver a minha casa

Voltar a ser casa
E dormir no casco de tartaruga.

Bêbado e Neurótico

Eu, cá, e a vida, lá. Estou oferecendo as máximas resistências que meu corpo aguenta, num luto ardente, violento e jovial.
Minha cabeça é um receptáculo de alicerces, onde construo, mentalmente, toda as barreiras de cimento. Sou concretista, duro e material: tenho 10 toneladas de pensamentos, todos eles espinhentos, ásperos e conclusivos.
São conclusivos em termos axiomáticos quando medidos em toda sua extensão.
Sou inflexível? Muito pelo contrário: a argamassa é fresca, pronta para construir estátuas, rodovias e muros.
O axioma consta no universo da construção: os andaimes sobem e descem, os pedreiros trabalham arduamente, o  cal consome os ares deste universo.
E fora dele, não há salvação.
Às vezes, me parece lama, ou areia movediça. Estou preso, e de forma ilógica, me defendo de outras alternativas. Até quando resistir? Até quando cuspir na vida, e torná-la um movimento de meus pensamentos?
Eu me movo no compasso da formulação racional, sempre em processo de inconstâncias. Torno a velocidade do universo uma propagação de um impulso da consciência.
Mas fora de mim, a madeira do meu quarto respira calmamente. A cama dorme, tranquila. E mesmo o barulho dos vizinhos são pacíficos.
Estou armado, lutando contra a mastigação da vida, a pulverização de meu ser. Não quero deixar a pavimentação, o piche e meus muros de concreto.
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Meus sonhos são todos extravagantes. O sono é o picadeiro, e meus complexos, artistas inesperados.
Danço, pulo, rio, choro, ando de perna de pau, sou uma mulher barbada, um trapezista forte, um palhaço ridículo. A lona de minha cama, junto do brilho das estrelas, compõem o espetáculo.
Sou romântico por excesso, surrealista em excesso e dadaísta em excesso. Tudo são excessos: meus vícios, meus impulsos suicídias, meus desejos de vida, minha solidão e meu amor.
A Lua canta por mim. Já de dia, o Sol esquenta a construção, como se eu fosse o demônio a labutar.
Tudo é tanto, tudo é bastante, tudo é grande, e todo grande é apogeu.
Eu quero fugir da pedreira e do asfalto. Quero poder rir os símbolos que meu inconsciente vomita.
Mas existe uma mão invisível, um peso que não permite o devenir. Uma mão que parece um carimbo, ou uma arma.

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Tudo funciona quando rezo. Tudo acontece quando sinto. Tudo funciona quando me equilibro.
Apenas me mantenho na corda bamba quando ao lado de Deus, dos arquétipos, dos símbolos, dos números, dos signos e da natureza.
Necessito aceitá-los. Necessito vivê-los.
Do contrário, sou um artista bêbado, decadente e velho, com as vísceras comidas pela melancolia dos filósofos; ou então, um militante utópico, crítico e altruísta — a ponto de anular o próprio ser em prol de uma causa.

All you need is less.

Divagações

Hora de escrever bobagem.
Porque a loucura é o Maia que possibilita todos os deleites desta vida mundana, fulgaz e tão vã.
Titãs: Às vezes qualquer um enche a cabeça de álcool/ Atrás de distração/ Nada disso às vezes diminui/ A dor e a solidão.
Somos todos pós-modernos, decaídos num relativismo absurdo, onde a morte de Deus — ou sua desfragmentação — é a posse de seus pedaços, caracterizados através de nossas próprias vivências e estudos.
Tanta pluralidade nos esmaga, afogando-nos num imenso coletivo do eu, do meu, da posse e da incerteza, porém abrindo possibilidade de desconfiguração de qualquer pré-destinação, como um cardápio numeroso. Opções em miríades.
Mas o poder da escolha esbarra na propriedade: o movimento da liberdade, diz o liberalismo, relaciona-se com a garantia da posse, tanto de nossas vidas quanto de nossas propriedades materiais, e quanto maior a dependência de nós com nós mesmos, mais aptos à exercer esta liberdade estamos, formando a tal da sociedade civil.
Aritmética simples: a propriedade garante a liberdade. Quem não tem, não é livre. E quem tem mais?
Escolhe o quiser do cardápio, risos.
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Triste este mundo plástico, tão vago e preenchido por um niilismo atormentador. Que seja abençoada sua razão, professor, que seja agraciada a possibilidade de não morrermos queimados pela Santa Inquisição e que seja vangloriado o ceticismo, este outro tribunal moderno. Mas não me diga que sua neurose é saudável, e nem que sua dissociação de um cérebro pensante é virtude para nós: tomamos os remédios, e rezamos pela organicidade dos seres.
Somos a sociedade dos excessos, da esquizofrenia e da anulação de qualquer magia, tão emocional e colorida demais para o poder do conhecimento positivista em sua última fase. Os psiquiatras clamam pela Ordem e Progresso, risos.
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Eu me enveneno todos os dias, deteriorando a areia que escorre a ampulheta de Cronos. Me enveneno de música, de livros e de vivências. Tudo que me faz vivo também me faz esquecer que vivo.
Life is pain!, grita Dr. House, um retrato da nossa contemporaneidade, a busca pelo máximo, pela autoridade, pela genialidade, a escalada até o cume de uma completude. Procuramos, procuramos, e não achamos nada.
Nestas horas eu tenho vontade de chorar. Queria só entender como o homem branco procura tanto, e não percebe que não há o que procurar.
Talvez um dia eu entenda isto, e entenda um pouco mais sobre a felicidade, a tristeza e a morte. Quem sabe eu finalmente entenda que não há o que diabos entender.

Sonho de Nudismo

Eu ontem, andando pela Paraíso, me peguei vagando em um outro plano, tão fantástico e ingênuo que me fez rir sozinho entre outros rostos desconhecidos que, quem sabe?, também não viajavam no ácido da imaginação.
— Marcos?
— Eu!
Abraço meu amigo, e seus olhos verdes sorriem para mim. De repente viro a cabeça e avisto um bando de loucos correndo em nossa direção, todos nus, gritando a juventude mais imbecil e risonha que conheço.
Ao avistá-los, senti meu coração virar manteiga. São meus verdadeiros compatriotas, gente companheira, o meu ninho.
— Hei, eu posso participar?! Gritei.
Um cara de rastafari e uma menina loira se viraram pra mim, concordando em uníssono, um pouco incrédulos.
Olho para meu amigo. Cara, vamos?!
Meio estagnado, disse que não. E eu, simplesmente me despi correndo, pra não perder a migração das aves. Foi-se a mochila, a camisa, a calça e a cueca, entreguei tudo nas mãos dele.
Tó.
Mas meu amor, eu corri tanto, mas tanto!
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Depois imaginei-me em minha cidade ritualmente natal, pois apesar de lá não ter nascido, foi o surgimento de meu ovo, e aqui em São Paulo, estou lentamente quebrando-o, revelando todas as possibilidades de meu ser.
Esta cidade natal é anacrônica, pois encarcera todo meu antigo eu, mal visto por muita gente.
Logo mal visto, logo mal interpretado, logo ambiente modelador de mim, logo a imagem se apoderou da minha existência.
Mas passemos pelos bons momentos:
Duas meninas e três meninos, eu incluso no segundo subgrupo, aproveitando um sábado que, curiosamente, permitiu aquela algazarra. Nunca havíamos nos visto antes, só pelos corredores, e pelos simpáticos ois, mas nunca juntos e bêbados, de tal forma que o encontro parecia um presente do destino.
— Não esperava isso de você!
A outra concorda.
— Sei lá, você parece tão…
E faz cara de planta.
Eu, bêbado, retruco dizendo que, o que diabos você está querendo dizer?!
Um intruso do grupo, mas conhecido meu, ri, afirmando junto delas.
— Você tá dizendo que eu sou tipo, nada?
— Não! Só que você é muito quieto e zen, sabe? Não esperava… Isso.
Fiquei envaidecido: este espírito de porra louca me faz bem.
Conversas, piadas, danço e canto de vez quando, abro meu lado non-sense, todos se impressionam e riem.
Proponho logo de uma vez:
— Já que você tem que carregar o celular, e podemos fazer isso na minha casa, por que não vamos todos nós de cueca?
Os três meninos bravamente desfilam os corpos seminus enquanto as meninas seguram nossas roupas. Eu bem que tentei convencê-las de irem conosco, de calcinha e sutiã, mas negaram veementemente.
Prontos?
E todos nós corremos. Eu bêbado, ele bêbado, ele, fisiologicamente sóbrio mas conscientemente bêbado.
Preciso dizer o quão lindo foi aquilo?
Depois, no final do trajeto, esperamo-nas, nossas mulheres de Atenas. Nos vestimos e rimos da bobeira de nossos corpos.
Mas na Paraíso, enquanto me recordava disto, resolvi apimentar minha volta para a cidadezinha, caso fosse passar o ano-novo lá: que tal correr nu?!
Obviamente, escolhi o cara mais sem noção pra participar desta Ilíada, o Imperador Augusto — lembrando que estamos em uma cabana, que é meu onirismo.
— Vamos, pelados?
— Uai, vamo. Se você for, eu vou.
Estamos de cueca. As pessoas em volta de nós aguardam ansiosamente o debandar dos pintos e bundas.
— Cê tá ligado, né? Ficar de cueca é fácil. O foda vai ser se desnudar.
Ele ri, concordando.
No três, cara.
Contamos até dois e meio, e vacilamos no último número. Rimos juntos.
— Quer saber? Foda-se.
Tirei a cueca e corri pela velha rua daquela velha cidade.
Depois que imaginei a cena, parei pra pensar no depois, pra pegar a roupa.
As pessoas ririam, se assustariam ou se envergonhariam? Tudo junto. Mas e se houvesse uma possibilidade d’eu constantemente estar nu em frente à todos, sem vergonha, pudor ou escrúpulos?
Aguardo este dia. Enquanto isso, projeto-me em uma praia de nudismos. E rio imaginando uma repentina ereção. Teria que desesperadamente correr em direção à água, não sei quantas vezes.
Bom, respiro, retornando à rua da Paraíso. Uma velinha passa e sorri por conta de meu cabelo roxo.
Olho pra tanta gente: quem sabe não estão também divagando desejos secretos?
Quantos pintos, bundas e bocetas não estão vagando por aí, de porão em porão, sonhos e sonhos, mentes e mentes?
Nudez risonha, vergonha provocadora, medo mas vontade.
Olho pra velinha. Seus cabelos brancos não enganam, moça.
Mas não enganam mesmo...

Alguns Anos de Solidão

— Mas eu juro que foi assim, companheiro.
Antônio me olhou desconfiado, suprimindo uma misantropia generalizada por seus ossos e experiências. Obviamente não acreditara em minha história, mas pude ver o fascínio que ela provocara neste homenzarrão truculento, visivelmente rabugento e frio.
— Foram três facadas, e de repente um sangue roxo escorreu pelo corpo dela, pelos seios, barriga e torso. Me assustei, e diante daquele teatro, forcei-me a descarregar mais ainda minha raiva, esmurrando-a por inteiro, cortando toda sua jugular e têmporas. 
— Só sangue roxo?
— Apenas roxo.
Pedimos mais um copo de rum, saboreando a demência de nossa natureza, piratas errantes e ambiciosos.
— Acho que mente pra mim.
— Acha que minto pra você?
— Sim. Nunca vi sangue roxo em toda minha vida. E olha que já se foram muitas — diz observando sua faca —.
— Então te provo, mostrando o que guardei daquela noite. 
Estendo um pequeno vidro que contem a captura do sangue.
Seus olhos se espremeram diante da demonstração cabal desta história.
— E te digo mais: isto já me retornou a vida, companheiro. Apenas uma gota deste sangue é capaz de fazer qualquer marujo ressuscitar, pronto pra singrar e percorrer as quimeras do infinito Atlântico. 
Ele ri de mim. Impossível, diz.
— Então crava esta faca no meu peito agora. Em seguida, derrama apenas uma gota — friso bem a quantidade — no local da ferida. Mas atenção: uma gota só já é necessária, caso contrário, torno-me um jumento, de patas, rabo e tudo mais.
Sabendo que tal oferta é demais para qualquer um, lanço-me em direção ao ponto fraco daquela besta humana:
— Ou você não tem coragem?
Dito isto, deu dois goles e meteu a faca. 
O bar inteiro para, assustado. Todos se preparam para uma briga, empunhando as armas. Mas Antônio eleva-se no balcão, estendendo o pequeno vidro. Todos ficam imóveis, prendendo o ar.
Uma gota é derramada, e por descuido dele, mais duas se vão.
Volto de forma triunfal à vida sentindo uma estranheza, uma animalidade peculiar. Tento falar, mas ao invés disso, azurro de forma incompreensível para os homens em minha volta.
Espantados, todos miram o sorriso de Antônio.
— Esta história é real? Pergunta o porco.
Olho para o suíno gordo e estupefato.
— Claro que é. Foi assim que me tornei jumento.
O galo cacareja:
— Só acredito vendo.
— Pois bem, então.
Estendo minha língua toda roxa. 
— Já viram isso? Existe outro jumento de língua roxa? Creio que não. 
Incrédulos, todos retornam à suas vidas cotidianas.
Em meu último dia, no abate de minha carne, o fazendeiro chama a mulher:
— Este bicho tem língua roxa! Acha que vai dar azar matá-lo?
A mulher, já sabida das coisas, diz que não, mas em todo caso, é bom estampar sua língua na parede da sala, pra prevenir qualquer coisa.
— “Além disso — diz — minha mãe costumava falar que língua de jumento da sorte, na verdade.”
Passado séculos e séculos, já com a comunidade tombada pelas areias do tempo, escavadores encontram a relíquia e a põem no museu, o que a torna objeto de peregrinação. 
Milhares passam por ela, rezam um pai nosso e cospem no pé direito:
— É pra dar sorte, diz Rebecca. Até o fim do ano, arrumo um homem pra me casar. E sorri.
Seu Roberto grita orgulhoso:
— Já perdi três empregos, mas sempre que rezo pela língua, a danada me arranja outro!
Tantas foram as pessoas e as oportunidades que a coroa britânica convidou-a para uma cerimônia, à fim de concedê-la o título nobiliárquico. Agora seria chamada de sir.
Mas logo que alcançara o elevadíssimo status, o Partido Progressista tomou o poder, cortou a cabeça da rainha e dilacerou tudo quanto é símbolo da nobreza. 
Jogada ao relento, a língua passa por anos de esquecimento.
Até que um dia, um rebuliço toma conta da população.
— Petrankovsky, — diz Altomiro, secretário do líder dos progressistas — algo deve ser feito. Há grupos agitadores que proclamam uma contra revolução, inspirando um golpe contra nós. Estes baderneiros são chamados de “Linguaceiros Rouxonais”.
— Traga-me o líder. E a cabeça do mesmo.
Em duas horas, o capturado revolucionário estava em frente à Petrankovsky e à toda sua corte, embalado num pequeno vidrinho.
— Queimem a língua. — o líder ordena.
Por descuido do empregado, a língua cai no chão. Neste momento, uma única gota do céu trespassa o único mínimo furo do telhado e a umedece, revelando o antídoto do sangue roxo.
A língua se metamorfoseia em um homem, o mesmo do bar, que matara a jovem de sangue roxo.
Todo atônitos, emudecem. Até Petrankovsky silencia-se.
Por fim, o homem abre a boca, estrala as costas e diz despreocupado:
— Um copo de rum, por favor? Estes anos todos me cansaram um pouco. Preciso renovar as energias.

Linguarudos

Beijos são muitos, milhares, bilhares. Não existe essa de alguém beijar bem ou mal: a língua está longe de avaliações.
O que existe são línguas tímidas e/ou expansivas, egoístas e/ou altruístas, medrosas e/ou charmosas. Cada uma com personalidade própria, entrosando com papilas gustativas alheias, se descobrindo e ampliando todas as próprias possibilidades.
Beijo bom ou ruim não existe; o que existe é uma boca gostosa e que atende bem aos parâmetros anatômicos/psicológicos da nossa. Às vezes o encaixe favorece, às vezes não. 
Não caiemos na predileção, adotando medidas rigorosas para um ótimo estalar de lábios. Beijo não é “Top 10 hits da Madonna”, beijo não é professora de caligrafia, beijo não é teste de audição. Beijo é sensação estética, profundo momento artístico de contemplação. 
E mesmo que não haja êxtase, paciência. A música que não soa bem às vezes é por culpa da cera em nossos ouvidos, e não da guitarra doida espacial.
Pergunte então sobre o juízo: subjetivo ou interpessoal?
Quero dizer, nossos apontamentos são puramente exclusivos ou atendem aos valores de uma sociedade? 
Ah, a historicidade do beijo. O belo não só varia de indivíduo para indivíduo, mas também de sociedade para sociedade; e quem sabe o beijo também não? Vai saber como Sócrates, Descartes ou Locke beijavam.
Mas espera. Comparar a arte com o beijo é supor que não há somente a expressão emocional, a catarse das papilas, mas também a técnica do ósculo.
Para que soe o acorde, é necessário também o treino do mesmo. Feeling e prática. Mas e o beijo?
Será que existe um manual do beijo? 
Será que existem escolas do beijo?
E profissionais do beijo?
Não sei, não sei. O que me basta é a psicologia da língua: conhecê-la e desvendá-la toda. Sem bom ou ruim, apenas o movimento, os desencaixes e as torções.
Tá, mas e quem tem mal hálito ou bate os dentes?
É uma boca medrosa. Para corrigi-la, ou utilizamos a ironia e depois a maiêutica, a convertendo pela dúvida de que talvez não seja a boca mais fantástica do mundo, reduzindo a petulância aos poucos, ou sejamos comportamentais, tacando-lhe o inseticida: reforço negativo.
Brincadeira. Bocas assim ainda não cresceram, e não tomaram consciência da própria existência.
Ou simplesmente acordaram de mal humor.

Três Pratos de Trigo para Três Tigres Tristes

Fui acordado pela estrondosa chuva, que esmaga as ideias flutuantes, os sonhos aéreos e as aspirações cotidianas.
Fomos todos nós de casa, Caqui, Rubia e Tulipa, alagados por dentro e por fora. A chuva apaziguou nossas brigas, mas também fez o ar pesar, junto de nossas palavras, que caíram e se perderam no solo úmido. 
Andamos todos cabisbaixos agora, procurando-as a todo custo, para que se possa pelo menos reuni-las, e formular frases, por menores que sejam. A tentativa é em vão, e o que nos resta são apenas os olhos, murmurando baixinho qualquer coisa que não incomode a chuva.
Eu, Caqui, fui o primeiro a sucumbir. Rubia, ainda levou um curto período de tempo para se dar conta de que o silêncio mais vale a pena. Já Tulipa, lutou bravamente pelo som das palavras.
Era até engraçado vê-la tentando conversar. Ficava toda vermelha e inchada, quase explodia. A cabeça tilintava, tocando Dó Ré Mi Fa, sem parar. Às vezes tínhamos que apertar seu peito para que não morresse sufocada, e era expelido, de dentro de sua boca, um La bem cumprido.
Enfim, desistiu, e tornamo-nos taciturnos, herméticos, quase que rústicos. 
Chegamos até a grunhir, de tão pouco que havia pra se falar. Parecíamos feras, atacando com o olhos. Andávamos prontos para qualquer ocasião em que o outro abaixasse aguarda, como babuínos selvagens. Rubi fazia trincheiras para se defender de possíveis invasores. Meus pelos e cabelos cresceram de maneira ostensiva. Tulipa desenvolveu os caninos.
Apenas por um momento perdemos esta barbaridade, quando um ribombante trovão explodiu a árvore da esquina. Esta árvore, tão magrela e alta, simplesmente foi desfrangalhada ao meio.
Nós três, que estávamos devorando a própria carne em cantos dispersos da casa, corremos para a sala e nos entreolhamos acuados, buscando a partilha do consolo, como cachorros molhados, tementes do mundo.
Lembro dos olhos de Rubi, espremidos de medo, mais do que o meu e o de Tulipa. Eram azuis, de camaleão, quase cristalinos diante do pavor. A transparência fazia com que mais parecessem um buraco no rosto. Medonho, sim, mas gerava compaixão quando contrastava com o rosto redondo e angelical dela.
Por fim, os trovões foram se afastando, e nós retornamos à habitual solidão, centrados nos azurros, rugidos, relinchares e no barulho da chuva, que mais silêncio parecia, de tão acostumados que estávamos.
Um dia, contrariando as leis da selva, Tulipa me acordou. Fomos para a sala, de quatro, como cachorros, ambos de pijama. Sentamos um de frente ao outro, e eu, escutei sua dor. Ou melhor, a enxerguei, já que perdemos todo vocabulário falado. Em compensação, transbordávamos de expressão contida. 
Seu olho direito procurava fugir do assunto, mas o esquerdo permanecia inflexível, com uma coragem e virtude espartana para dizer o indizível. 
Enfim, mostrou-me o que era: estopim.
Não aguentava mais o barulho da chuva, o silêncio e a bestialidade entre nós três, a irregularidade dispersa na ausência de horários e aquela maldita árvore caída, que, merda, ninguém faz nada pra removê-la, ninguém se mexe, ninguém fala, ninguém respira, parece tudo morto.
Não foi difícil compreender sua dor. Não mesmo. A sístole e a diástole entre nós era equânime, marcada por um compasso unido, crescente, quase marchando.
Chorei junto dela, e nossas lágrimas secaram as lágrimas do céu, como se curássemos a dor atmosférica. No escuro, soluçávamos baixinho, compartilhando a dor daquele universo só nosso. 
Rubia parece ter ouvido nossa pequena chuva, pois prostrou ao nosso lado. Tulipa abriu o braço e a enlaçou entre nós. Choramos juntos, grudados um no outro, perdoando a ausência de todos. De tanta frieza acumulada, só a lágrima pode esquentar a gélida e metálica atmosfera vivida.
Nos entreolhamos, e pela primeira vez em semanas desta chuva repressora, pude eu, sussurrar algo:
— Onde estão os dragões?
E de repente algum ser fotografou nossa casa, a árvore caída, a rua alagada e a cidade mofada, iluminando o momento através de um grande flash. 
Em seguida, até nossa respiração parece ter voltado, como se estivesse presa em um vasto oceano. Puxamos o ar com tanta força que a luz da sala acendeu. A luz do poste também. O relógio reviveu seu tiquetaquear. Nossas pupilas dilataram-se. O sol reacendeu sua chama, conduzida por Hélio. Vimos, todos nós juntos, um calor abrasar nossos corpos, e de tão intenso que era, nos desnudamos rapidamente, dividindo o suor e os hormônios.
— Puta que pariu! — Rubia gritava.
Mal tocamos o chão e ele quase desmanchava, parecendo um grande chocolate.
Corremos em direção ao banheiro, para refrear o inferno que de repente o mundo virou. Ligamos o chuveiro, e em baixo da água fria, nos acalmamos, tateando os braços e rezando a Deus pela sorte de não termos sublimado como bolas de naftalina. 
Enfim, respiramos em baixo d’água, aliviados.

Só os Loucos Sabem?

Sobre as pessoas normais.
Os indivíduos normais se despertam de um sono tranquilo — caso os benzodiazepínicos permitam —, bebem do café matinal, se aprontam com os uniformes sociais, vestem a máscara da nulidade, vão para os escritórios e vendem sua força de trabalho. Dentro de um período extenuante, garantem a reposição da labuta através de uma breve pausa. Em seguida, retornam à produção compulsiva. No final do expediente, respiram aliviados: basta a volta. E assim, retornam, enfileirados e centrados no depois, no amanhã, e no depois de amanhã. 
Dentro do carro, do ônibus ou do metrô, se dispersam da tensão social em frente ao celular, ou entre as paredes dos fones de ouvido.
Chegam em casa, abrem a porta, e dentro do lar, desnudam-se do social. Vestem a tranquilidade de mais um dia vencido. Enchem o estômago, alimentam os olhos de fruição gratuita, a televisão. Preenchem a alma com mais um sono, e menos um sonho.
No dia seguinte, elas acordam. Lêem Bukowski, e decidem não ir ao trabalho. Abandonam o paletó e escrevem na parede do quarto mais uma poesia sobre a reificação do homem. Fumam um cigarro e observam os maratonistas desesperados na rua, subindo e descendo dos ônibus, que passam pesados, como um grande organismo. As pessoas normais tragam mais duas vezes, sofrem de uma imensa solidão e fazem escárnio das pessoas que acordam, tomam café, vestem uniformes e máscaras, trabalham, descansam, trabalham mais, voltam para casa e dormem, reiniciando o círculo.
Em seguida, jogam o cigarro fora. Lamentam sobre o capitalismo. Se enfurnam de Marx. Senão isso, decidem ler Sartre. Correm para as ruas e escrevem nas paredes “Você prédio acho tédio/ Você praça acho graça”. As pessoas normais, então, usam saias, deixam a barba por fazer, pintam o cabelo de azul, se divertem com música alternativa. Tornam-se vegetarianas e passeiam pela Augusta. De repente gostam de música erudita também. 
As pessoas normais odeiam as outras pessoas normais. Somos todos loucos.

Tédio e o Século XXI

Rodo em círculos, masco 32 vezes minha língua e busco formar frases com dez sílabas. Pé direito, pé esquerdo, pé esquerdo, pé direito; e agora, pé esquerdo, pé direito, pé direito, pé esquerdo. Coço mais quatro vezes meu nariz.
Fodeu, agora abro e fecho a geladeira, num desespero que só se equivale a abrir e fechar a dispensa. Não há comida, bolacha ou o caralho a quatro. 
Bato a cabeça na parede, e dentro de instantes, já estou na insanidade deste século. Faço parte da juventude da vodka, dos curtos e plurais amores. Abocanho um pouco do ar sem a menor intenção de pensar em respirá-lo vagarosamente. Eu quero mais, mais e mais.
NÃO QUERO, ME SOLTA, ME LARGA!
Olho em volta, e por fora de meus olhos inchados: onde estão as malditas câmeras? Sei já que meu corpo, um imenso pinto ambulante, é coagido em busca do gozo, gozo e mais gozo. Me estimulam, eu vômito, e depois engulo novamente.
ME PRENDE, ME APERTA, ME SEGURA!
Que eu cairia, se houvesse poço fundo.
Se eu cair, será no chão, e longe de qualquer honraria. Somente o poder da grana varrerá menos um.

Medo deles

Não quero póli-amor, nem vastidão intensa que é a vida compartilhada. Toda alegria evaporada não passa de fumaça, onde todos, pela ânsia de se acomodar na temporária efusão de gostos, a condensam no corpo, dançando, não civilizadamente, algum sorriso surpreendentemente expansivo, ultra moderno, bem resolvido.
Sim, eu vejo os olhos dos que fumam a sabedoria dos vinte anos. Eles se enroscam na certeza onipotente, e abrem as flores dos reacionários. Quebram as vidraças, exaltando a beleza dos excluídos. 
Eu plaino sobre o hálito que exalam, junto das palavras mais belas que ouvi. Mas sou pesado, e não encontro onde pousar. Desabo entre a fogueira. 
Refujo-me, vilipendiado. Onde cabe meu erro egoísta? É o erro de ser ouvidos de um grande discurso. Sou ouvidos de uma grande agonia libertadora. 
Eu odeio a magnitude da poesia e o brilho dos poetas. Sou capaz de comer o cal da raiva, engolir cimento até meu estômago arder de incompatibilidade com a igualdade da beleza.
Detesto as grandes figuras. Detesto.
Alguém sabe o nome disso?



Perfume de Corpo

Enquanto rastejávamos no limbo da cama, torcíamos as pernas e as costas. Esfregávamos a pele suada, ensopada de hormônios. Tanto cheiro assim deixava meu quarto soar os rugidos de ti, leoa, e meus músculos se retesarem num impulso suicída, provocando a morte deste pântano molhado.
A cama tremia, enquanto eu apertava os lençóis, arfando em seus seios, empinados, tesos. Lambia-os, desde a ponta, mordendo-lhes, até os contornos vultuosos. Tanta era a força bufalística, tanto eram os seus gritos, que a selva inteira nos molhava. Chovia dentro da canoa, onde lentamente afundávamos, nus, acoplados e alagados. 
A água quente misturava-se ao frio da garoa. Um vento gelado batia-nos, e nos aquecíamos de onde mais pulsava o calor, de onde os pontiagudos raios de sol devoravam seu ventre. 
Profusão. O encontro explodia em sete dores. Sete dores, vivas, sete cores dos olhos mais vivos, setecentos dedos mergulhavam na alcova do teu corpo. Eu varria suas costas, mordendo a nuca, desvendando as úmidas cavidades. 
Voltávamos ao quarto, de onde pude preencher a santidade provocativa, arregalando o terço, provocando-lhe a culpa e punição. 
Segurava sua bunda com força, alimetando-a constantemente, sem intervalos de tempo para se recompor. Não resisti.
Lancei-me ao mar, afogando-me, num ato de suicídio. Despejei todo o líquido que garantira nossa espessa vida. Pintei seus seios e barriga com meu gozo, uma imensa cortina. 
Enquanto brincávamos de espalhar o óleo suavemente por nossas peles, a textura foi perdendo sua cor. Transformou-se num imenso rio viscoso e transparente. Lambi o que restava de mim, beijando suas nádegas, coxas, cintura, umbigo, pentelhos e mamilos. Senti meu próprio gozo, besuntei minha própria pele.
Beijei sua boca, e trocamos o fluído.
E assim, despencamos do penhasco, unidos.


Os Amantes,Galeria Planta Zero, Barcelona