sábado, 14 de fevereiro de 2015

Desfragmentado

Flutuava a noite invertida, refletida no lago.
A lua se desdobrava, como um lençol amassado. Todo o espelho estelar se movia lentamente, acompanhado de uma brisa noturna.
Pegou uma pedra e a arremessou em direção à constelação. Primeiramente subiu, e percebendo o inútil esforço, resolveu descer, tocando o céu de mentirinha: todo o lago que refletia a astrofísica.
O pequeno alvoroço assustou Narciso, que se concentrava em encontrar todo seu mistério. Amava o todo. Amava suas partes. O choque que a pedra provocou arruinou todo seu belo e estático mistério.
Olhou para trás e notou um encapuzado.
— Quem é você? — perguntou.
— Aquele que o afastará de séculos de mitos, expressões e patologias.
Toda frase que rompe a motora realidade nos causa espanto. A escutamos bem, mas mesmo assim precisamos confirmar:
— Como?
— Exatamente. Irei te livrar, e mais ainda, humanizar.
— Me salvar do que, exatamente?
— Escute bem: seu nome é Narciso. Toda uma infinidade de literaturas, poesias, e síndromes nascerão de sua história. Em minutos você irá encarar seu reflexo, se espantar com toda beleza e terminará com o desejo de beijar a própria imagem. Morrerá afogado. E assim, serão séculos e mais séculos de citações. Entendeu?
Narciso franziu a testa. E como o encapuzado teria tanta certeza?
— E como tem tanta certeza? Como a convicção trespassa séculos futuros?
— Narciso, olhe para mim.
E tirou o capuz.
Ficou perplexo. O estranho, agora desmascarado, era ninguém menos que ele mesmo.
— Como isso é possível? Quem é você? Ou como pod…
— Sim, Narciso. Somos os mesmos. Somos o mesmo. Eu sou você. Você sou eu. A mesma pessoa, o mesmo corpo.
— Mas como eu habitaria um outro corpo senão o meu?
— A questão não é essa. A questão é que irá se matar. Mas eu posso te salvar.
— Isto é impossível. Minha morte resultaria num duplo suicídio! Você não pode me salvar. Se a decisão é minha, também é sua. Me salvar mostra que não somos o mesmo.
O Narciso-antes-encapuzado olhou para o lago. Respondeu:
— Quantos Narcisos existem?
— Três. O reflexo, eu e você.
— Não. Resposta errada.
— Como?
— Não existe Narciso nenhum. O reflexo é o que você imagina e ingenuamente chama de Narciso. Uma figura inventada, onírica. Você é outra pessoa. Eu sou sua consciência.
— Mas então como somos o mesmo? E quanta à idêntica aparência?
— Justamente. Estou aqui para te livrar do conflito. Olhe novamente para o lago.
E assim ele fez.
Gritou de espanto. O espelho agora mostrava outra pessoa. A mesma anteriormente, mas diferente em essência. O mesmo cabelo, olhos e boca. Mas só era ele mesmo, não um ideal separada de sua existência.
Levantou a cabeça e se surpreendeu com o vazio: sua consciência havia desaparecido.
Deitou-se, extremamente perdido. O que foi tudo isso? O que foi tudo isso!? Onde ele está?
Ficou minutos a se perguntar, atordoado com o acontecimento. Olhou para a lua, no teto estelar. Olhou para seu reflexo esferóide, amarelo.
Compreendeu que a pergunta correta é: “quem, afinal, sou eu?”.
Fitou sua própria imagem. Se tocou. Se beliscou, se mordeu, se apalpou, se masturbou.
E lentamente ia compreendendo: a consciência não havia desaparecido. Apenas voltou para seu lugar, que é dentro dele.
A imagem do espelho não mudou. Continuou a mesma.
O que finalmente havia mudado era ele: tornou-se uno, único, todo.
Um uno Narciso, um único Narciso, um todo Narciso.
E aprendeu, finalmente, a se amar.

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