sábado, 14 de fevereiro de 2015

Alguns Anos de Solidão

— Mas eu juro que foi assim, companheiro.
Antônio me olhou desconfiado, suprimindo uma misantropia generalizada por seus ossos e experiências. Obviamente não acreditara em minha história, mas pude ver o fascínio que ela provocara neste homenzarrão truculento, visivelmente rabugento e frio.
— Foram três facadas, e de repente um sangue roxo escorreu pelo corpo dela, pelos seios, barriga e torso. Me assustei, e diante daquele teatro, forcei-me a descarregar mais ainda minha raiva, esmurrando-a por inteiro, cortando toda sua jugular e têmporas. 
— Só sangue roxo?
— Apenas roxo.
Pedimos mais um copo de rum, saboreando a demência de nossa natureza, piratas errantes e ambiciosos.
— Acho que mente pra mim.
— Acha que minto pra você?
— Sim. Nunca vi sangue roxo em toda minha vida. E olha que já se foram muitas — diz observando sua faca —.
— Então te provo, mostrando o que guardei daquela noite. 
Estendo um pequeno vidro que contem a captura do sangue.
Seus olhos se espremeram diante da demonstração cabal desta história.
— E te digo mais: isto já me retornou a vida, companheiro. Apenas uma gota deste sangue é capaz de fazer qualquer marujo ressuscitar, pronto pra singrar e percorrer as quimeras do infinito Atlântico. 
Ele ri de mim. Impossível, diz.
— Então crava esta faca no meu peito agora. Em seguida, derrama apenas uma gota — friso bem a quantidade — no local da ferida. Mas atenção: uma gota só já é necessária, caso contrário, torno-me um jumento, de patas, rabo e tudo mais.
Sabendo que tal oferta é demais para qualquer um, lanço-me em direção ao ponto fraco daquela besta humana:
— Ou você não tem coragem?
Dito isto, deu dois goles e meteu a faca. 
O bar inteiro para, assustado. Todos se preparam para uma briga, empunhando as armas. Mas Antônio eleva-se no balcão, estendendo o pequeno vidro. Todos ficam imóveis, prendendo o ar.
Uma gota é derramada, e por descuido dele, mais duas se vão.
Volto de forma triunfal à vida sentindo uma estranheza, uma animalidade peculiar. Tento falar, mas ao invés disso, azurro de forma incompreensível para os homens em minha volta.
Espantados, todos miram o sorriso de Antônio.
— Esta história é real? Pergunta o porco.
Olho para o suíno gordo e estupefato.
— Claro que é. Foi assim que me tornei jumento.
O galo cacareja:
— Só acredito vendo.
— Pois bem, então.
Estendo minha língua toda roxa. 
— Já viram isso? Existe outro jumento de língua roxa? Creio que não. 
Incrédulos, todos retornam à suas vidas cotidianas.
Em meu último dia, no abate de minha carne, o fazendeiro chama a mulher:
— Este bicho tem língua roxa! Acha que vai dar azar matá-lo?
A mulher, já sabida das coisas, diz que não, mas em todo caso, é bom estampar sua língua na parede da sala, pra prevenir qualquer coisa.
— “Além disso — diz — minha mãe costumava falar que língua de jumento da sorte, na verdade.”
Passado séculos e séculos, já com a comunidade tombada pelas areias do tempo, escavadores encontram a relíquia e a põem no museu, o que a torna objeto de peregrinação. 
Milhares passam por ela, rezam um pai nosso e cospem no pé direito:
— É pra dar sorte, diz Rebecca. Até o fim do ano, arrumo um homem pra me casar. E sorri.
Seu Roberto grita orgulhoso:
— Já perdi três empregos, mas sempre que rezo pela língua, a danada me arranja outro!
Tantas foram as pessoas e as oportunidades que a coroa britânica convidou-a para uma cerimônia, à fim de concedê-la o título nobiliárquico. Agora seria chamada de sir.
Mas logo que alcançara o elevadíssimo status, o Partido Progressista tomou o poder, cortou a cabeça da rainha e dilacerou tudo quanto é símbolo da nobreza. 
Jogada ao relento, a língua passa por anos de esquecimento.
Até que um dia, um rebuliço toma conta da população.
— Petrankovsky, — diz Altomiro, secretário do líder dos progressistas — algo deve ser feito. Há grupos agitadores que proclamam uma contra revolução, inspirando um golpe contra nós. Estes baderneiros são chamados de “Linguaceiros Rouxonais”.
— Traga-me o líder. E a cabeça do mesmo.
Em duas horas, o capturado revolucionário estava em frente à Petrankovsky e à toda sua corte, embalado num pequeno vidrinho.
— Queimem a língua. — o líder ordena.
Por descuido do empregado, a língua cai no chão. Neste momento, uma única gota do céu trespassa o único mínimo furo do telhado e a umedece, revelando o antídoto do sangue roxo.
A língua se metamorfoseia em um homem, o mesmo do bar, que matara a jovem de sangue roxo.
Todo atônitos, emudecem. Até Petrankovsky silencia-se.
Por fim, o homem abre a boca, estrala as costas e diz despreocupado:
— Um copo de rum, por favor? Estes anos todos me cansaram um pouco. Preciso renovar as energias.

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